sexta-feira, 21 de março de 2014

Tesouros da China

Uma nova pesquisa arqueológica revela os segredos do imperador Qin Shi Huang Di, sepultado há 2,2mil anos na China

 
Soldados de terracota da China
O. Louis Mazzatenta
Pigmentos coloridos ainda delineam o rosto dos soldados de terracota, que parecem tão vivos quanto à 2,2 mil anos
Eles formam uma dupla estranha, o arqueólogo e a estátua. De pé na oficina de restauro do Museu dos Guerreiros e Cavalos de Terracota, Duan Qingbo fita uma das estátuas que ajudou a exumar em 1999. A figura de terracota tem mais de 2,2 mil anos e sua parte superior, despida e em tamanho natural, ainda que sem a cabeça, revela músculos poderosos. Já Duan tem 36 anos de idade, corpo frágil, olhos vivos e um sorriso fácil. Em sua mão, o inseparável cigarro, marca Floresta de Pedra. Diminuto ao lado da maciça estátua, ele sorri e comenta: “Ele é que nem o Mike Tyson”.
A estátua deixa passar em silêncio esse inesperado comentário cultural. Aliás, silêncio e mistério compõem sua aura – ninguém sabe ao certo o que essa estátua representa nem o que seria o objeto que a figura aperta contra o ventre protuberante. Os fatos conhecidos são poucos: trata-se da mais antiga estátua já encontrada na China que retrata o corpo humano em tamanho natural e com detalhes realistas com exceção do rosto. Ela faz parte de uma surpreendente série de achados recentes nas cercanias do monte que abriga o túmulo de Qin Shi Huang Di, o primeiro imperador que uniu a China sob a mesma dinastia, a Qin. Em um conjunto de sepulturas conhecidas sobretudo por seu disciplinado exército de terracota, a estátua barriguda destaca-se de maneira extraordinária – um personagem civil, quase despido, cuja cabeça foi destruída.
Como todo bom arqueólogo, porém, Duan não se intimida diante de tanta incerteza. Ele simplesmente se concentra naquilo que pode ver – o ressalto de um tríceps, a sutil ondulação do grande dorsal – e o mistério se transforma em assombro. “Dê uma olhada nestes músculos e ossos”, sussura. “A maioria dos especialistas achava que, nessa época, os escultores chineses não retratavam com fidelidade o corpo humano.”
Há uma semana estou em Xian, com o objetivo de entender melhor as etapas iniciais da história imperial da China. Essa região da atual província de Shaanxi foi o local que as duas primeiras dinastias imperiais escolheram para instalar sua capital, aproveitando as linhas de defesa natural proporcionadas pelo rio Huang (Amarelo) a leste e pelas montanhas Qin Ling ao sul. Os Qin governaram de 221 a 207 a.C. e sua decadência foi seguida pela ascensão da dinastia dos Han ocidentais, que ocuparam o poder de 206 a.C. até 9 d.C.
Hoje estamos aprendendo mais sobre essas dinastias graças às escavações de dois conjuntos de sepulturas, os complexos de Qin Shi Huang Di e de Han Jing Di, o quarto imperador dos Han ocidentais, que governou de 157 a 141 a.C. Como ambos consideravam a morte uma continuação da vida na Terra, a arqueologia aqui assemelha-se à limpeza de uma janela para o passado – permitindo a visão daquilo que mais importava para esses governantes e suas culturas.
Qin Shi Huang Di e Han Jing Di formam outra dupla curiosa: o primeiro foi um reformador radical, sendo em geral visto como um tirano cuja dinastia chegou ao fim apenas quatro anos após sua morte. Já o segundo foi um governante cauteloso que, graças em parte à prudência taoísta, consolidou o poder de um clã que se manteria no poder por mais de quatro séculos. (Após o colapso dos Han ocidentais, a mesma família restabeleceu a dinastia em uma nova capital e ainda permaneceria no governo, sob o nome de Han orientais, de 25 d.C. até 220 d.C.)
Apesar do contraste entre esses imperadores, hoje eles estão vinculados um ao outro por causa da arqueologia, pois nenhum outro complexo funerário na região de Xian foi escavado de maneira tão exaustiva. E os seus reinados abrangem o que pode ter sido o período mais crucial na história da China, uma época em que diversos reinos em conflito se uniram para formar um único país com uma forte tradição imperial. Foram os Qin que introduziram o revolucionário conceito de império e, mais tarde, os Han lhe atribuíram um sentido de tradição e ordem, o qual iria marcar os mais de 2 mil anos de domínio imperial.
A façanha de unificação da China por Qin Shi Huang Di acabou ficando associada aos mais de 1,5 mil guerreiros e cavalos de terracota escavados a partir de 1974, ano em que camponeses toparam com algumas dessas estátuas enquanto perfuravam um poço. Concebidas para acompanhar Qin Shi Huang Di em sua vida no além, as figuras em rígida formação refletem o poderio militar do imperador. O numeroso exército, porém, com um total estimado em 8 mil peças, na verdade ocupa apenas uma fração do complexo de sepulturas, ainda em grande parte não escavado, que se estende por 56 quilômetros quadrados e cuja construção teria exigido uma força de trabalho de cerca de 700 mil pessoas.

 

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