sábado, 22 de março de 2014

Itália antes de Roma

Estudiosos estão descobrindo o passado dos povos pré-romanos, que ao contrário do que se pensava, aliaram-se aos romanos


 
Pira da Festa de Sant'Antonio Abate, em Novoli, na Itália
 

A imensa pira de videira irá virar uma fogueira às vésperas da Festa de Sant'Antonio Abate, em Novoli. Esse rito católico tem raízes pré-cristãs que remontam à população original da Apúlia
O menino apareceu em seu sonho. Era um melancólico e belo samnita que não sabia como voltar para casa. “O cenário era uma colina que conheço, mas ela estava despida de vegetação”, recorda Teresa Cerlone. “Ele vagava por um mundo que não era o seu. Estava em busca de uma passagem, um acesso não a uma casa, mas a outro mundo.
Também me lembro de que havia uma fonte. Por fim, avistamos uma entrada, entre duas colunas, no alto de uma escadaria, como no templo de Pietrabbondante”, prossegue ela, emocionada. “Fomos até as colunas, e ele suplicou: ‘Ajude-me a encontrar o caminho’. Agarrou-me a mão e senti que ele era de carne e osso. Em seguida, desapareceu, mas sua mão ficou na minha. Agora já não era mais humana, e sim de terracota. Então eu acordei, empapada de suor.”
Assim que clareou, Teresa correu à colina que havia visto no sonho. Embora não seja arqueóloga, há tempos ela vem pesquisando sobre os samnitas, o aguerrido povo que chegou a dominar a região montanhosa dos Abruzos e de Molise, nas proximidades de sua casa, em Isernia. No local em que, no sonho, vira uma fonte, ela começou a cavar a terra. De repente, encontrou um fragmento de terracota: a mão do menino.
Descobertas igualmente emocionantes, embora não tão misteriosas, estão trazendo à luz novos aspectos dos povos que viveram na península Itálica, antes de ela ser conquistada pelos romanos. Na Idade do Ferro, por volta do século 9 a.C., quando os romanos não passavam de uma tribo de agricultores que viviam em cabanas à margem do Tibre, a península fervilhava com diferentes povos, cada qual com cultura, língua, arte e artesanato próprios. Na verdade, até o século 4 a.C., ninguém diria que os romanos tinham alguma chance de se tornar os conquistadores do Ocidente. Na época, seria mais óbvio apostar nos etruscos – ou nos samnitas.
Em geral conhecidos como povos itálicos, os grupos étnicos da Itália pré-romana tendiam a viver em aldeamentos provisórios, e não em vilas, cultivando hortas, criando ovelhas e vacas, negociando com mercadores de outras regiões e brigando com os vizinhos. Em um mundo no qual as divindades se manifestavam no vôo das aves e no trovão, eles criaram pequenas obras-primas de cerâmica e metal, veneravam trindades de deuses com sacrifícios tríplices de animais, e até o fim de suas forças buscaram frear a inexorável expansão de Roma. Tudo em vão: no século 1 d.C., os últimos resquícios de sua autonomia política e cultural haviam sucumbido diante do avanço romano.
Embora os etruscos sejam o povo mais conhecido da miríade de tribos e subtribos da Itália pré-romana, três outros grupos merecem atenção: os faliscos (conciliadores), os úmbrios (religiosos) e os samnitas (guerreiros). Assim como o solo da atual Itália é rico em túmulos e objetos de terracota, também a cultura atual da Itália é farta em palavras e costumes legados por esses povos pré-romanos – suas idéias, sua engenhosidade e sua piedade constituem uma multidão de elementos que até agora imaginava-se ser de origem romana, mas que na verdade foram apenas adotados pelos conquistadores.
Esses primeiros italianos falavam idiomas que tinham origem comum: a língua-mãe, o sabélico, era escrita com sinais baseados nos alfabetos grego, latino ou etrusco. Uma dessas línguas, o osco, chegou a ser mais difundida do que o latim na península. Os samnitas falavam osco, que provavelmente diferia do úmbrio, tal como o espanhol difere do francês. Já os faliscos conversavam sobre o tempo em um idioma muito semelhante ao latim. As centenas de palavras em osco e outras línguas que sobreviveram em inscrições são bastante elucidativas, pois ecoam as vozes dos homens e mulheres que as falavam. Em outros termos, podemos ouvi-los, subitamente vivos – os gritos de ira, o riso das crianças e as lamentações das mulheres. Maatir, mãe; puklum, filho.
O costume romano de dar ao recém-nascido um prenome e um nome talvez tenha vindo de outro grupo itálico, os sabinos. A luta de gladiadores era um costume funerário que provavelmente se originou com os etruscos e só depois foi adotado pelos romanos, como entretenimento. O próprio nome “Itália” é derivado de uma antiga palavra sabina que originalmente designava apenas a extremidade sul da península. “O regionalismo que ainda hoje caracteriza a Itália deriva das diferenças entre esses grupos”, analisa o professor Nicola Terrenato. “É ali que estão as nossas raízes culturais.”

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