terça-feira, 25 de março de 2014

Conhecendo a história de Júlio César
O general mais famoso do mundo era, na verdade, um mestre conciliador e um gênio da política. Seu nome virou sinônimo de imperador, mas ele nunca pisou no trono. Conheça os paradoxos da vida de Júlio César




Os gênios, diz a lenda, nascem prontos. Quase todo mundo já escutou histórias intermináveis sobre Mozart encantando soberanos da Europa com meros 5 anos de idade, ou sobre Pelé deixando os suecos boquiabertos quando não passava de um meninote de 17. Mas, para o homem cujo nome virou sinônimo (literalmente) de imperador e general, as coisas ocorreram bem mais devagar. Ele teve de esperar a maturidade para conseguir mostrar a que veio, galgando o poder aos poucos, de mansinho – ascensão que, aliás, combinava bem com a personalidade desse mestre conciliador. César governou para valer os gigantescos domínios de Roma por apenas quatro anos, mas a influência do “Divino Júlio”, como seus conterrâneos passaram a conhecê-lo depois da morte, dura mais de dois milênios.
Ganhar fama de divino, aliás, era algo que andava nos planos da família de Caio Júlio César desde que Roma era Roma. Ou quase: há quem diga que, na verdade, a gens(família expandida ou clã, para os romanos) chamada Iulia viera de Alba Longa, uma cidade vizinha no Lácio. Seja como for, os orgulhosos antepassados de Caio Júlio diziam ter surgido de Iulus, um dos filhos de Enéias, o nobre troiano com pai mortal e mãe divina – ninguém menos que Vênus. “Assim, misturam-se à nossa raça a santidade dos reis, que tão poderosa influência exercem sobre os homens, e a majestade dos deuses, que mantêm debaixo de sua autoridade os próprios reis”, teria se vangloriado César, durante um discurso, de acordo com o historiador romano Suetônio, que viveu entre os anos 64 e 141.
Mania de grandeza à parte, o fato é que o jovem Júlio, nascido por volta do ano 100 a.C. (a data exata é um tanto controversa), não teve muita chance de alardear ou de lucrar nada com sua origem divina durante a juventude. A coisa mais esperta a fazer era ficar de boca fechada, porque ele cresceu durante um dos períodos mais turbulentos da história romana. Por séculos, a cidade-estado tinha sido governada pela esquisita mistura de oligarquia e democracia que os romanos chamavam de república, com o poder distribuído (desigualmente, é verdade) entre os legisladores do Senado, o “poder executivo” representado pelos cônsules e a pressão constante do povo romano, que participava de eleições e era representado pelos tribunos.
Esse sistema centenário e complicado não passou incólume pela onda expansionista que, durante os séculos 3 e 2 a.C., transformou Roma na senhora absoluta do Mediterrâneo. Os camponeses livres que antes formavam a base da sociedade, da economia e da força militar romana passaram a ficar cada vez mais para trás na competição com os grandes latifundiários e sua multidão de escravos capturados nas regiões dominadas. E, se o objetivo era conquistar, cada vez mais ter um comando militar significava ter o poder de fato, se não de direito. O resultado de toda essa mudança é que a vida política passou a se dividir em dois grupos informais. Eram os Optimates, o partido aristocrático, que não estava nem um pouco preocupado em aliviar os problemas sociais da nova superpotência, e os Populares, que reconheciam essa necessidade – no mínimo para tentar usar a seu favor a boa vontade do povo e do exército.
Ocorre que, assim como seu tio, o grande general Mário, César era um dos Populares – e eles sofreram um senhor golpe quando o líder aristocrático Sila derrotou Mário e se tornou o líder supremo da República em 82 a.C. Sila iniciou uma série de expurgos políticos depois de subir ao poder, e o jovem César precisou de uma boa dose de esperteza e sorte para escapar imaculado das perseguições. “Essa talvez seja a melhor explicação para o fato de César só ganhar destaque num momento relativamente tardio da sua vida. As circunstâncias fizeram com que pessoas do partido de Mário, como ele, fossem barradas pelo regime de Sila”, afirma o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Talvez a ajuda de alguns amigos influentes entre a aristocracia tenha feito com que Sila poupasse a vida de César e o enviasse à Ásia para participar do cerco a Mitilene, uma cidade grega que havia se aliado ao maior inimigo de Roma na época, o rei Mitridates do Ponto (no atual mar Negro). Foi ali que ele conheceu o rei Nicomedes da Bitínia e iniciou com o nobre de origem helênica um relacionamento que muita gente chegou a considerar como amoroso.
Com ou sem esse caso de amor homossexual, o fato é que o período vivido na Ásia Menor foi uma experiência proveitosa para César. Como todos os jovens com aspirações políticas de seu tempo, ele se interessava por retórica e oratória, e decidiu partir para a ilha grega de Rodes para estudar os dois temas com os grandes mestres helênicos. É possível que sua fama de grande escritor (exemplificada pelos clássicos Da Guerra da Gália e Da Guerra Civil) se deva às lições que tomou nessa época.
Mas talvez o mais interessante tenha sido o que se deu durante a ida de César a Rodes. Se os escritores clássicos são dignos de crédito, a situação foi cinematográfica: capturado por piratas, o jovem César passou 40 dias em cativeiro enquanto aguardava seu resgate ser pago, conversando e brincando animadamente com seus captores e até exigindo que eles elevassem o valor que pediam por sua vida, por considerá-lo baixo demais. Em meio a toda essa camaradagem, contudo, César avisou que iria voltar depois de libertado e punir o bando todo. Claro que ninguém levou a ameaça a sério, mas a primeira coisa que o romano fez ao ser solto foi reunir uma frota, capturar os bandidos e mandar crucificá-los.
Como não há mal que sempre dure, Sila renunciou ao poder e morreu em 78 a.C., o que permitiu a César um retorno seguro a Roma e a possibilidade de iniciar uma carreira política. Logo tornou-se conhecido pela defesa de causas consideradas populares, como os direitos dos habitantes das províncias e a distribuição de terras a veteranos de guerras. Foi assim que ganhou seu primeiro comando militar importante, tornando-se procônsul da Hispânia – trecho da península Ibérica que englobava tanto áreas da Espanha quanto do atual Portugal.

César cumpriu com perfeição seu dever de pacificar os bárbaros locais, mas, conta o biógrafo grego Plutarco (que viveu no século 1), não estava satisfeito com o rumo de sua carreira até ali. Ao ler sobre os triunfos de Alexandre Magno, ele teria começado a chorar de repente. Seus amigos perguntaram qual era problema, e ele respondeu: “Não vos parece ser digno de tristeza que, na minha idade, Alexandre já era rei de tantos povos, enquanto eu ainda não consegui nenhum sucesso tão brilhante?”.
Verdade ou não, a anedota de Plutarco virou quase uma deixa para a ofensiva em busca do poder que César iniciou daí em diante. Ao lado de Crasso e Pompeu, dois aristocratas ambiciosos que haviam conseguido fama e influência graças a suas vitórias militares, César formou uma aliança que passaria a ser conhecida como o Primeiro Triunvirato. Ao contrário do que muita gente imagina, o nome nada tem a ver com um cargo oficial. Ao contrário: para os romanos da época, o acordo entre o trio virou sinônimo de uma panelinha secreta e sinistra, na qual cada um se dispunha a facilitar as ambições políticas do outro. Uma espécie de pacto de não-agressão.
Não demorou muito para que o acordo funcionasse em favor de César, que galgou o posto mais alto da República, o de cônsul, em 59 a.C. De quebra, ganhou o comando das províncias da Gália Cisalpina (a região da Itália entre os Alpes e o rio Pó) e do Illyricum, nos atuais Bálcãs. Nessa época, César soube que os helvécios, um povo celta aparentado dos gauleses, estava prestes a realizar uma migração em massa para a Gália, atravessando a rica província romana do sul da atual França (chamada até hoje de Provença) e pondo em risco, alegou ele em seus escritos, os aliados gauleses de Roma.
Mas é claro que as motivações de César e de Roma eram bem mais complexas: “O livro Da Guerra da Gália não é uma descrição isenta, mas uma obra de propaganda comum no processo de expansão romana. Ele apresenta a guerra como justa, como ação defensiva. Pura retórica de guerra”, afirma Norberto Luiz Guarinello, professor de história da Universidade de São Paulo (USP).
Além disso, a versão dos gauleses como sendo um bando de chefetes tribais, eternizada por Asterix (o célebre personagem das histórias em quadrinhos), simplesmente não corresponde à realidade da época. A influência greco-romana era sentida havia séculos na Gália e as tribos celtas tinham, por exemplo, abandonado em grande parte a monarquia em favor de magistrados eleitos anualmente, à maneira de qualquer cidade-estado que se prezasse no Mediterrâneo. Muitos gauleses, como a tribo dos Aedui, viam vantagens no domínio romano, cedendo aos invasores homens e suprimentos. “Os romanos aliavam-se às elites locais, numa estratégia de incorporação, primeiro dessas elites e, mais tarde, da população em geral”, diz Pedro Paulo.

A campanha da Gália, que se estendeu até 50 a.C., marcou o ápice dos triunfos militares de César, que levou o estandarte das legiões romanas para os confins do mundo conhecido pelos seus compatriotas como a Germânia, além do rio Reno e da Grã-Bretanha. Segundo Plutarco, acima de tudo, ele se mostrou um mestre em inspirar a devoção em seus soldados e encorajá-los a seguir em frente mesmo diante de obstáculos aparentemente intransponíveis. Seus discursos viravam lendas e ele não fugia dos campos de batalha, sendo um magnífico guerreiro quando a cavalo. Em menos de dez anos, a Gália caiu sob domínio romano. Não houve aldeia que permanecesse irredutível.
Nesse meio tempo, entretanto, o triunvirato tinha virado fumaça. Crasso morreu numa malfadada tentativa de conquistar os partos, donos de um império na Mesopotâmia e na Pérsia. Pompeu, antes genro de César, cortou boa parte dos laços que tinha com o sogro quando Júlia (a filha de César) morreu ao dar à luz. O bebê viveu apenas alguns dias. O Senado, a principal força política de Roma, passou a temer a influência ascendente de César e concedeu a Pompeu autoridade sobre os exércitos da República. Os políticos de Roma exigiram que César renunciasse a suas legiões se quisesse voltar à cidade. E isso ele jamais faria.
De volta da Gália, ao se aproximar do rio Rubicão, tradicional fronteira com a Itália, César teria pronunciado a frase famosa “Alea jacta est”, ou “a sorte está lançada”. Ao atravessar o curso de água com seu exército, declarava suas intenções. Os partidários de Pompeu, ligados aos Optimates, deixaram Roma e organizaram a resistência a César em diversos pontos nas províncias. A guerra civil, repetindo o que ocorrera nos tempos de Mário e Sila, havia começado.
A vitória de César, porém, não tardou. As forças de Pompeu foram derrotadas na Itália, na Espanha e nos Bálcãs. A batalha decisiva entre os dois rivais se deu em Farsália, na Tessália (norte da Grécia), e a derrota de Pompeu foi quase completa. O perdedor escapou para o Egito, mas foi perseguido por César, que provavelmente o teria poupado, mas os ministros de Ptolomeu, o rei-menino egípcio, assassinaram-no na tentativa de agradar ao general vitorioso. Os partidários de Pompeu ofereceram alguma resistência, mas foi só questão de tempo até César pacificar todo o império em 46 a.C.
O domínio de César sobre Roma tornou-se então indiscutível. Assumindo o título de ditador perpétuo (uma alteração do velho cargo romano de ditador, que dava poderes quase ilimitados a um indivíduo durante emergências), ele passou a mandar e desmandar na escolha das magistraturas da República. Contudo, seu governo foi extremamente conciliatório se comparado aos expurgos e perseguições promovidos por Sila. Ele fez questão de tentar atrair para sua esfera de influência muitos dos antigos aliados de Pompeu, perdoando-os. “Diferenciar-se de Sila era, a partir dos anos 60, explorar um perfil político próprio em Roma e favorecer uma visão suprafacciosa do político. César ficou famoso por sua clemência”, afirma Norberto, da USP. “A política de César foi sempre a da cooptação”, diz Pedro Paulo, da Unicamp.
Ninguém sabe dizer qual seria o próximo passo do ditador. Os Optimates acusavam-no de querer tornar-se rei, cargo odiado pelos romanos desde que haviam acabado com a monarquia, no século 6 a.C., mas outros relatos se referem ao fato de César ter recusado a coroa real oferecida a ele por seus partidários durante cerimônias públicas. “Mas a maioria dos historiadores concorda que César era uma figura mais autocrática”, afirma Pedro Paulo. Depois de tudo, é difícil que ele concordasse em se submenter ao Senado.
Seja como for, qualquer plano que pudesse ter existido foi por água abaixo quando conspiradores da facção aristocrática do Senado cercaram César nos fatídicos idos (dia 15) de março de 44 a.C. Uma porção de punhaladas tirou a vida do ditador, que tentou se defender usando o estilo (uma espécie de pena de metal usada para escrever).

Na morte, mais uma polêmica. O fato de Brutus, que participou do assassinato, ser tradicionalmente identificado com seu filho adotivo provavelmente é falso. “Um erro de tradução”, diz Pedro Paulo Funari. “O relato que restou da execução originalmente estava em grego e nele César usa a palavra têknon, que pode ser tanto ‘criança’ quanto ‘filho’, para se referir a Brutus. Depois a palavra foi traduzido como filius para o latim. Mas, aparentemente, na época téknon tinha um significado pejorativo”, afirma. Portanto, em vez de “Até tu, Brutus, meu filho!”, o que César provavelmente disse ao morrer foi “Você também, Brutus, seu moleque!”
O crime dos Optimates não salvou a República. De um novo triunvirato e de uma nova guerra civil emergiu vitorioso Caio Octaviano, ou Augusto, o sobrinho-neto de César que se tornaria o primeiro imperador romano.

Homens e mulheres

César casou quatro vezes e teve muitas amantes

A vida sexual dos poderosos é vasculhada desde que o mundo é mundo, e a de César foi das mais movimentadas. Em geral, a fama que se atribui ao conquistador da Gália também é a de um conquistador das mulheres. Seus soldados o chamavam de “o calvo adúltero” (antes de completar 50 anos, César perdera todo o cabelo). Ele se casou quatro vezes, com Cosútia (divorciou-se), Cornélia (ela morreu), Pompéia (divorciou-se) e Calpúrnia, que sobreviveu a César. Com Pompéia, viveu uma situação particular. Um jovem apaixonado por ela, Clódio, invadiu a casa de César enquanto era celebrada uma festa em honra de Bona Dea, uma deusa cujos rituais não podiam ser vistos por homens. Clódio disfarçou-se de mulher, mas foi flagrado, o que gerou um escândalo em Roma. César divorciou-se de Pompéia, mas não puniu Clódio. Diante do juiz, que quis saber, então, por que estava se separando, ele teria dito: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”. O mais tórrido e controverso affair do general parece ter sido mesmo o que teve com Cleópatra, que deixou de lado seu marido Ptolomeu para se entregar a César. Dizem que a rainha não era exatamente bonita, mas que seu charme, sua inteligência e cultura cativaram César de tal modo que ele a mandou trazer para Roma, alojando-a em sua própria casa. Da união dos dois teria nascido um filho, que ganhou o nome grego de Cesárion (a dinastia ptolomaica de Cleópatra era de origem macedônio-helênica). Pesam sobre César, ainda, rumores quanto a seus relacionamentos com outros homens. Em um debate no Senado, em que César parecia empenhado em defender os interesses do amigo Nicomedes (soberano que conhecera na Bitínia), alguém insinuou que “todos sabem o que tu deste a ele”. Os boatos eram tamanhos que as legiões de César, nas celebrações de suas vitórias em Roma, costumavam chamá-lo de “rainha da Bitínia”. Não que isso contribuísse para diminuí-lo aos olhos do povo, embora os romanos fossem menos tolerantes em relação ao homossexualismo que os gregos. “O importante é que o homem tivesse uma postura masculina, independentemente de ter relações com homens ou com mulheres”, diz Pedro Paulo Funari.

Grande guerreiro

César foi um opositor que não poupou violência contra seus inimigos bárbaros ou romanos

Gália

César teve de enfrentar a complexa política de alianças que unia as tribos gaulesas a Roma e opunha outras à superpotência. Os gauleses tinham uma cavalaria soberba e eram guerreiros corajosos, mas pouco disciplinados, de acordocom os relatos do general. O pior dos combates, e o mais glorioso para César, ocorreu em Alésia. Ali, de acordo com Plutarco, César teve de fazer cerco a 170 mil gauleses numa fortaleza, enquanto 300 mil o cercaram do lado de fora. O general resolveu o impasse construindo uma dupla de muralhas, uma protegendo-o contra os de dentro da fortaleza, outra contra os de fora, e saiu vitorioso.

Bretanha

A imensa ilha, habitada por várias tribos celtas, algumas das quais aparentadas dos gauleses, jamais havia visto a chegada de um exército das grandes potências do Mediterrâneo antes do desembarque de César. Embora tenha perdido grande quantidade de homens por causa de naufrágios e tempestades, o general puniu os bretões pela ajuda prestada aos gauleses e venceu chefes tribais das atuais regiões inglesas de Kent e Essex, recebendo deles reconhecimento formal de submissão. O verdadeiro domínio romano ali, no entanto, só seria estabelecido mais tarde.

Farsália

A batalha decisiva contra Pompeu e as forças dos Optimates ocorreu nessa região da Tessália famosa por suas planícies e adequada para o combate a cavalo. Foi exatamente com essa arma que Pompeu, em maior número e com uma cavalaria muito bem armada, estava contando. César decidiu atacar antes do inimigo e, de acordo com Plutarco, ganhou a dianteira ao instruir seus soldados a ferir com lanças o rosto dos cavaleiros, jovens aristocratas que não queriam ficar desfigurados e, por isso, debandaram. A derrota de Pompeu, que fugiu para o Egito, foi completa: 6 mil mortos e 24 mil capturados.

Egito

O orgulhoso comportamento de César depois de sua chegada a Alexandria no encalço de Pompeu logo fez com que a guarda real e o populacho da cidade pedissem a cabeça do general ao jovem rei Ptolomeu. Cercado em seu palácio com uma pequena força de 4 mil homens, César teve de esperar a chegada de nova legião para tentar escapar. Os combates, centrados no mar e no porto de Alexandria, foram encarniçados, e em determinado momento César foi forçado a nadar para salvar a própria pele. Reforços vindos da Síria, no entanto, permitiram que o general derrotasse Ptolomeu, morto numa batalha, e entregasse o poder a Cleópatra, que se tornara sua amante.

Bom de boca

César e as frases que entraram para história

Quase tudo aquilo que se conhece sobre os detalhes mais pessoais e sobre os discursos feitos por César vem dos seus próprios escritos, nos quais relata a guerra contra os gauleses e as batalhas contra os exércitos de Pompeu. Outra fonte, talvez a principal, são os biógrafos clássicos, em especial Suetônio, na sua A Vida dos Doze Césares, e Plutarco, em Vidas Paralelas, um trabalho monumental que relata a trajetória comparada de Alexandre, o Grande, e de Júlio César. Desnecessário dizer que esses textos são tanto história como literatura, e que embelezavam e expandiam significativamente os supostos feitos e discursos do personagem famoso ao longo de sua carreira. Plutarco pinta-o como um predestinado pelos deuses, enquanto Suetônio apresenta uma visão mais crítica. É significativo, no entanto, notar que ambos os trabalhos retratam César como um escritor, frasista e orador extremamente talentoso. O seu “Veni, vidi, vici”, ou “Vim, vi e venci”, tornou-se sinônimo de competência e controle rápido de situações. Diante dos corpos dos Optimates em Farsália, conta-se que ele teria dito “Hoc voluerunt”, “Assim o quiseram” – como quem diz que os aristocratas poderiam ter evitado o banho de sangue se fossem menos intransigentes.

A herança de Júlio César

"O kaiser nasceu em julho durante uma cesariana"

Não entendeu nada? Talvez ajude saber que a palavra que designa o soberano alemão, o nome do mês “sete” e a operação que substitui o parto normal têm o mesmo patrono. Ele próprio, o “JC” de Roma. Apesar de ter governado seu povo por pouquíssimo tempo, o impacto de César sobre a história e a cultura ocidentais foi imenso e talvez inédito. A começar pelo calendário juliano, organizado sob sua supervisão, que estabeleceu as bases para a contagem do tempo que ainda usamos hoje e só foi alterado significativamente no século 16 da era cristã. O mês de julho empresta seu nome de César, divinizado por Augusto depois de sua morte. O governante ficou famoso por embelezar Roma e ser um patrono mão-aberta das artes na capital do mundo antigo, plantando as bases para as realizações nessa área que seu sucessor iria realizar poucos anos mais tarde.

A coroa real nunca chegou a adornar sua cabeça, mas seu nome virou sinônimo (literalmente) de imperador em alemão (kaiser) ou russo (czar ou tzar). Por último, várias anedotas costumam associar a prática da cesariana ao fato de que César só teria nascido graças a uma operação pioneira realizada em sua mãe.
 A normalidade da violência em Roma
Para o gladiador dor e morte deixavam de ser coisas terríveis para se tornar parte corriqueira da vida. Honra e vergonha são palavras-chave para entendermos a paixão romana pela arena




Os jogos de gladiadores fornecem um bom exemplo dos intrincados percursos sociais do espetáculo no mundo romano. As disputas de gladiadores eram um fato normal da vida cotidiana havia muito tempo. Durante o Império, os combates de gladiadores aumentaram de freqüência e se difundiram por todo o mundo romano. Surgiu um tipo especial de edifício, o anfiteatro, que funcionava como palco das lutas entre gladiadores e de outras formas de espetáculo. Em Roma, assim como nas províncias, as lutas de gladiadores estavam sempre ligadas à pessoa do imperador. Era ele que as oferecia em Roma e, nas províncias, eram os sacerdotes do culto imperial os responsáveis por sua realização. Os anfiteatros eram uma espécie de microcosmo da sociedade romana, como parte e reflexo do cotidiano. Os assentos eram repartidos segundo as classes da população, e o próprio anfiteatro era um local onde a população não apenas via, mas se fazia ver e ouvir, no qual imperador e plebe, dirigentes e dirigidos se confrontavam face a face, onde o anonimato da massa conferia força e consistência para o apoio ou para as reivindicações da plebe. Nesse espaço, sagrado e mundano, as lutas entre gladiadores ocupavam um lugar especial.

O anfiteatro era, para os romanos, parte de sua normalidade cotidiana, um lugar no qual reafirmavam seus valores e sua concepção do “normal”. Nos anfiteatros eram expostos, para serem supliciados, bárbaros vencidos, inimigos que se haviam insurgido contra a ordem romana. Nos anfiteatros se supliciavam, também, bandidos e marginais, como por vezes os cristãos, que eram jogados às feras e dados como espetáculo, para o prazer de seus algozes ou daqueles que defendiam os valores normais da sociedade.

Mas os combates de gladiadores ocupavam um lugar à parte, um lugar de honra. Embora, de início, os gladiadores tenham sido, em sua maioria, prisioneiros de guerra ou escravos, na época do Império boa parte era de origem livre, os auctorati, que se ofereciam como gladiadores, colocando-se sob o poder de seu mestre (o lanista), ao qual prestavam juramento sagrado.

Esse juramento transformava o gladiador num ser para o qual a dor e a morte deixavam de ser ameaças terríveis para transformar-se em parte corriqueira da vida: um simples momento, o momento da verdade, que deixava de ser objeto de angústia para se tornar objeto de honra. Honra e vergonha são palavras-chave para entendermos a paixão que os gladiadores suscitavam no mundo romano. O gladiador vencido, em vez de lutar inutilmente pela vida, oferecia graciosamente o pescoço a seu adversário e à platéia. Transmutava, assim, a vida num combate glorioso, cujo fim, necessário para todos, podia ser uma morte digna. A figura do gladiador era um belo espelho de realização humana, um modelo para filósofos e religiosos. Não era o massacre, a vista do sangue, a dor alheia que seduziam os espectadores, mas um uso, todo próprio, todo especial, todo romano, do que nós mesmos consideramos uma violência absurda.

A Tragédia de Pompéia
Nas horas que se seguiram à erupção do Vesúvio, morreram 16 mil habitantes de Pompéia, praticamente 80% de toda a população


Cinzas e lama moldaram os corpos das vítimas,
permitindo que fossem encontradas do modo
exato em que foram atingidas pela erupção
do Vesúvio, cujo vulto vê-se ao fundo.

Nas horas que se seguiram à erupção do Vesúvio, morreram 16 mil habitantes de Pompéia. Hoje, é possível reconstituir esta tragédia passo a passo, como se estivéssemos presentes.

Pompéia, uma cidade de 20 mil habitantes, produtora de vinho e azeite, vive hoje, 24 de agosto de 79 d.C., um dia de festa. Um grupo de teatro vindo de Roma deve se apresentar no Grande Teatro. Começando por volta das 11 horas da manhã, o espetáculo deve durar, como sempre, até a noite. São um pouco mais de dez horas.

Os padeiros, com suas cestas de doces nos braços, se dirigem às arquibancadas. Diante das thermopolia, bares ao ar livre da Antigüidade, os consumidores terminam de beber suas últimas taças de posca e as lojas começam a descer as persianas de madeira, sinal de fechamento. O dia está bonito e, como na véspera, se anuncia quente.

De repente, ouve-se uma explosão. Espanto! Num instante, todos estão na rua. Espetáculo alucinante, o topo do Vesúvio havia se partido em dois. Uma coluna de fogo escapa dali. É uma erupção! De início, todos se assustam e se interpelam. Havia pelo menos 900 anos que o vulcão não dava sinais de vida. Dizia-se que ele estava extinto. Logo depois é a agitação. Em volta começa a desabar uma chuva de projéteis: pedras-pomes, lapíli e, às vezes, pedaços de rochas - fragmentos arrancados do topo da montanha e da tampa de lava resfriada que obstruía a cratera.

Num instante, as praças e ruas se esvaziam. Aqueles que não moram no bairro correm para se refugiar sob uma abóbada, um pórtico, qualquer abrigo, enquanto outros se apressam em correr para se proteger em casa. O que fazer, pensam, a não ser esperar? O bombardeio terminaria mais cedo ou mais tarde. Durante 20 minutos, a erupção faz misérias, cobrindo a cidade com 2,60 metros de escórias. Em seguida, uma poeira arenosa toma o lugar das pedras-pomes e os lapíli diminuem. A esperança aumenta. Alguns audaciosos arriscam até a colocar o nariz para fora. Do Vesúvio sai somente uma coluna de fumaça. Mais um pouco de paciência e tudo deverá voltar ao normal.

DESTRUIÇÃO

Assim, duas horas se passam. O que fizeram os habitantes de Pompéia durante este período? Não se sabe muito. Em compensação, sabemos o que fez o Vesúvio. No interior da cratera, após a expulsão da tampa de lava, a pressão começou a cair vertiginosamente. O magma vulcânico, que dormia há séculos, começou lentamente a espumar e, às 13 horas, rasgando o ar, destruindo as casas, virando de ponta-cabeça as colunas dos pórticos, saiu bruscamente numa série de explosões. Do vulcão vê-se escapar uma nuvem monstruosa em forma de pinheiro - um cogumelo, como nós diríamos hoje. E, subitamente, fez-se noite em pleno dia. Uma noite marcada com alguns raios lívidos. As cinzas agora caem na forma de uma chuva tão densa que obscurece o sol.

Infelizmente, a chuva não é somente densa: ela está carregada de vapores clorídricos. É pela intoxicação por gás, e não por soterramento, que morrerão as pessoas em Pompéia. A primeira guerra química contra o homem foi feita pelo Vesúvio. Só agora, enfim, os habitantes de Pompéia decidem fugir. Mas eles haviam perdido duas horas preciosas. Abandonando seus abrigos, suas casas, tomando ou não o cuidado de levar consigo seus tesouros, milhares se dirigem às portas da cidade nesta noite negra.

Aqueles que moravam no noroeste se precipitaram naturalmente para a porta de Herculanum. Alguns carregavam diante de si uma lâmpada a óleo, como se uma chama pudesse resistir algum tempo àqueles ventos, àquela chuva viscosa de cinzas. A maioria colocou sobre a boca uma almofada ou uma telha encontrada pelo caminho. Mas será que alguém pode se defender contra um inimigo que se insinua em todas as partes através de uma fina poeira carregada de vapores clorídricos?
Nessa escuridão varrida por um vento de tempestade, fragilmente iluminada de vez em quando por projéteis de fogo, não há mais pobres ou ricos. Somente sombras que se debatem, desesperadas, umas contra as outras e que tropeçam nas escórias ou sobre o corpo de alguém agonizando após ter sido abatido pelo furor do Vesúvio. Em sua pressa de chegar mais rápido, alguns chegaram até a tirar as roupas e correm nus.

À porta! Chegar até ela antes que os destroços voando das casas nos derrubem, antes que a chuva de cinzas nos asfixie! E à porta, à porta miraculosa, a maioria chegará. Mas não será a porta do Paraíso, será a porta do Inferno!

O vento soprava do noroeste e vinha do Vesúvio. Sair pela porta de Herculanum significava ir em sua direção, ou seja, jogar-se numa tempestade que nenhuma construção ou abrigo poderia amenizar. Sufocados e cegos, aqueles que depois de tantos esforços tinham conseguido atravessá-la têm apenas um desejo: dar meia- volta e encontrar o que, no instante anterior, parecia o paroxismo do horror. Mas como lutar contra a multidão que sobe? Mulheres, crianças tentam e são imediatamente pisoteadas.

ABRIGO

E assim, por ironia, em meio ao pânico generalizado, é nos jazigos pelo caminho que os vivos vão buscar abrigo. Uma mulher que carregava uma criança corre para se abrigar num mausoléu, mas este desaba sobre ela. Um grupo de quatro pessoas, dentre as quais uma mulher ricamente enfeitada - apertando um bebê contra o seio -, se refugia com pressa sob o pórtico de uma tumba. Mas o pórtico também desaba e mata a todos. A Via dos Sepulcros nunca mereceu tanto o seu nome como neste dia! Os banqueteiros se reuniram num triclínio fúnebre. Estendidos sobre seus leitos de repouso, eles honram a morte. Celebrando o soterramento de um parente, é o deles próprios que terminarão por celebrar.

Mas voltemos à multidão desesperada que procurava chegar até as outras portas da cidade. No sudeste, a porta Marina estava particularmente lotada. Longe do Vesúvio e da direção do vento, ela levava ao mar aberto, à salvação. Primeiro passaram por ela todos os que passeavam ou trabalhavam no Fórum, ou ainda aqueles que tinham ido banhar-se nas termas. Em seguida, no momento do pânico geral, veio juntar-se a eles a multidão que tinha abandonado as casas e os casebres. Cheia de esperança, a massa de fugitivos despenca para além da porta, pela ladeira que conduz ao Sarno, e depois segue pelo caminho que acompanha o curso do rio.

Ontem, nesse mesmo caminho, quando ocorrera a procissão de Ísis, muitas e muitas vezes eles pararam ali para rir, cantar e descansar. Hoje correm o mais rápido que lhes permitem os montes de entulho. Vários tropeçam, sem dúvida, mas logo se levantam, pois a menos de um quilômetro encontrarão o mar, um barco e a fuga. Enfim, ofegantes, os primeiros fugitivos chegam ao porto. Ao porto? Ondas de vários metros de altura batem na areia. O mar está muito agitado. Navegar? Como e com o quê? Todos os barcos foram destruídos. Desse lado não há saída. Então novamente se produzem as cenas de confusão cujo teatro é a porta de Herculanum. Aqueles que queriam dar meia-volta deparam com a massa que tenta descer.

DESESPERO

Na noite escura, no meio de assovios do vento que, à beira do mar, recobrou toda a sua fúria, eles se esmagam uns contra os outros. Muitos morrerão pisoteados. Morte relativamente doce, no entanto, se pensarmos que, nessa mesma margem, todos os sobreviventes terminarão com os pulmões tomados de gases. Não havia porta de salvação para os habitantes de Pompéia. Chance de salvação só houve para aqueles que moravam no sul e no sudeste da cidade. E, ainda assim, somente se eles não tivessem demorado para fugir e, durante a fuga, tivessem passado pela porta de Nocera em vez da porta de Stábia. A porta de Stábia também tinha sido soterrada. Mas essa dupla condição foi poucas vezes encontrada. Desse lado, portanto, foram igualmente numerosas as cenas de desolação.

Na grande palestra (ginásio), a erupção surpreendeu os pedreiros em pleno trabalho. Durante alguns instantes eles permaneceram sob os pórticos. Em seguida, um deles teve uma idéia: a latrina. Ela poderia, com efeito, representar um abrigo seguro contra o bombardeio das escórias. Eles correram para lá e se trancaram. No início, demonstraram altruísmo. Quando outros que tiveram a mesma idéia vinham bater na porta, eles abriam. E assim, rapidamente eles se julgaram bastante numerosos e não abriram mais. Quantos, rejeitados desta forma, morreram esmagados pelas colunas do pórtico vizinho? Não se sabe com certeza. De qualquer modo, a julgar pelas ossadas, foram muitos. Mas foi possível reconstituir a agonia de três pessoas, pois, ao asfixiá-las, as cinzas moldaram seus corpos.

Os operários que tinham se trancado não foram salvos por seu egoísmo. Em sua latrina estavam abrigados do bombardeio de escória, mas não da chuva de cinzas. Quando esta se infiltrou, todos pereceram, até o último. Mas muitas outras ossadas foram encontradas no interior e nas proximidades da grande palestra - inclusive mais aqui do que em todos os outros lugares, mostrando que mesmo nesse bairro rico, assim como nas insulae pobres, a maioria não pôde se salvar a tempo. Quando a erupção começou, eles se fecharam, como os ricos, em suas casas. Depois a chuva de cinzas começou, então fugiram. Em família, em grupos patéticos de quatro, cinco ou seis pessoas: o pai, a mãe e os filhos.

Às vezes duas famílias - sem dúvida vizinhas de porta - se uniram, como se este fato tornasse a salvação mais segura. Quando tinham o cuidado de levar consigo seus tesouros, estes não representavam grande coisa: algumas jóias de pouco valor, pouco dinheiro, às vezes absolutamente nada. Pessoas simples, portanto, que, antes de sufocar, caíam ou se lançavam de boca no chão.

Mesmo a porta de Nocera não foi para todos a porta da salvação. Um jovem casal chegou até ela e conseguiu mesmo atravessá-la. Como os outros, os dois se trancaram em casa durante o primeiro bombardeio de pedras-pomes. Agora, para avançar, tinham de lutar contra essa tempestade de cinzas que cega, que se cola à pele e queima a garganta. Grande, vigoroso, com corpo de atleta, o homem caminha na frente, tentando abrir passagem para sua companheira em meio dos montes de lixo. De repente, a mulher cai com o rosto no chão e não consegue mais se levantar. O homem quer ajudá-la, mas também cai. Num último esforço, suas mãos tentam unir-se, mas a chuva de cinzas lhes nega este último favor.

Mas de todas estas histórias da porta de Nocera o mais patético é, sem dúvida, o que segue. Trata-se de 13 pessoas que formavam três famílias - duas famílias de fazendeiros e a família de um comerciante. Eram vizinhos que moravam perto e, provavelmente, se entendiam muito bem. Quando o bombardeio começou, eles conversaram e decidiram se refugiar na casa mais sólida. Depois, quando a chuva de cinzas começou decidiram fugir. Todo o campo já estava coberto de uma mortalha de detritos. Cegos, sufocando, eles pegaram o caminho que passava diante de suas casas. Em primeiro lugar vinha um escravo levando nos ombros um saco de provisões. Atrás dele, dois meninos de 4 a 5 anos caminhavam de mãos dadas para dar coragem um ao outro; tinham colocado sobre eles um pedaço de tela e eles procuravam colocá-la sobre a boca. Em seguida vinham seus pais, o pai ajudando a mãe, sem dúvida uma inválida, a continuar a caminhar. A segunda família era composta de um jovem casal e de uma menina. Cada um protegia a boca com um pedaço de tecido. Enfim vinha a família do comerciante: duas crianças com 10 anos que também estavam de mãos dadas, uma menina mais nova que a mãe conduzia e depois o pai.

E estas 13 pessoas, nessa tempestade de cinzas, nessa noite escura, no meio da escória, continuavam seu caminho. Como poderiam pensar em escapar com crianças tão pequenas? Eles continuavam porque o homem não se resigna facilmente à idéia de morrer imóvel.

RESQUÍCIOS

Vinte séculos mais tarde, nós os encontramos, modelados pelas cinzas, na mesma posição, com as expressões de seus últimos momentos, uns curvados sobre si mesmos, outros estendidos, seja de costas, seja com o rosto contra a terra. Os meninos de 4 a 5 anos tinham as feições calmas; as crianças com 10 anos, os membros entrelaçados, ainda segurando as mãos uma da outra. Quanto ao mercador, caído sobre os joelhos, o braço direito apoiado na terra, as costas estendidas, tentava ainda se levantar quando a morte tomou conta dele.
Tais foram, portanto, as tristes histórias que as diversas portas contaram aos escavadores quando estes as descobriram.

Mas as casas tiveram igualmente inúmeros dramas para contar, pois muitos dos habitantes de Pompéia não se resignaram a abandonar seus bens. Quantos esqueletos intactos ou mutilados foram encontrados nas casas! No subsolo, no térreo, no primeiro andar e mesmo sobre os telhados, já que alguns não hesitaram em subir para a parte mais alta de suas casas, na tentativa de escapar à invasão crescente dos resíduos.

Na propriedade chamada de Diomedes, no Caminho das Sepulturas, o pai fez sua família descer ao porão: uma galeria cuja iluminação provinha de aberturas em sua abóbada e onde ele conservava suas ânforas de vinho com as pontas enterradas no chão. Na pressa, sua mulher passou em volta do pescoço um pesado colar de ouro e nos braços, pulseiras. Sua filha também colocou suas jóias mais preciosas; ele mesmo colocou numa sacola todo seu dinheiro líquido: dez moedas de ouro e 88 moedas de prata com a efígie de Nero, Vitélio e Vespasiano.

E, com boas provisões de pão, frutas e outros alimentos diversos, eles esperam. As horas passam. Eles estão seguros, ou pelo menos acreditam estar. Mas o ar começa a piorar cada vez mais. O pai decide investigar. Com uma chave na mão, seguido por um escravo, ele sai. Uma vez do lado de fora, a chuva de cinzas o sufoca imediatamente. Ele morre. Mas os reclusos da galeria não serão protegidos tampouco.

Impalpável, a cinza não pára de penetrar pelas aberturas, cinza carregada de vapores clorídricos. A moça tenta em vão proteger a cabeça com sua túnica, e os companheiros tentam, também em vão, cobrir o nariz e a boca com tecidos. Séculos mais tarde, os 18 esqueletos serão descobertos, incluindo o de uma criança.

Uma descoberta mais surpreendente ainda aconteceu um pouco mais longe, na propriedade chamada de Mistérios. Na entrada da galeria subterrânea onde se refugiaram os operários que trabalhavam em sua reforma os escavadores foram obrigados a recuar imediatamente. Após tantos séculos, os vapores deletérios ainda estavam ali. Tão presentes que só foi possível enfrentá-los com máscaras contra gás.

Durante todo o dia 24 e todo o dia 25, e ainda no dia 26, a chuva de cinzas não parou. Quando, enfim, na aurora do dia 27, o sol reapareceu, o Vesúvio tinha mudado de forma. Ele possuía agora um topo duplo e, no lugar da antiga cratera, um cone havia se formado. Quanto aos habitantes de Pompéia, 80% deles - 16 mil numa população de 20 mil - jaziam a vários metros de profundidade. A cidade estava morta, mas uma morte que a tornaria imortal.

O Egito Romano
Trinta anos antes da era cristã, Cleópatra VII, a última governante ptolomaica estava morta. O Imperador Augusto havia posto o Egito sob o governo romano. Uma terra cheia de prestígio, fácil de defender e capaz de produzir quantidades enormes de alimentos




O Egito em que os romanos chegaram era muito parecido com o país dos tempos faraônicos remotos, um país definido pelo rio Nilo, que cortava o deserto de norte a sul, com alguns quilômetros de terra cultivada. O rio dividia a região a norte da cidade de Mênfis, que era muito grande e já havia sido a capital real, em duas partes principais; as outras cidades localizadas entre estas duas zonas, junto com elas, formavam o Delta, que era intensamente cultivado. No Egito a agricultura dependia da cheia anual, que nos melhores anos levava água aos locais mais distantes das áreas cultivadas e cobria o solo com o fértil lodo do Nilo. O rio era rico em peixes, comidos frescos, defumados ou usados na produção de temperos. As principais plantações eram de trigo, uvas para fazer vinho em quantidades enormes, especialmente no final do período romano. Nos pântanos do Delta, crescia o papiro. A maioria das pessoas vivia em aldeias na zonal rural e muitas nas principais cidades de cada nomo, que se tornaram vilas de crescimento, poucas avenidas principais retas normalmente flanqueadas por edifícios públicos e pontilhadas de templos. Alexandria era um grande armazém, que não fabricava nada muito importante, mas recebia e exportava os produtos do Egito e os materiais exóticos da Índia e do Oriente, trazidos nas épocas das monções aos portos do Mar Vermelho e transportados para o Nilo por todo o deserto.

O Domínio Romano

O Egipto era um trunfo muito especial para o imperador, pois era um país cheio de prestígio, fácil de defender e fornecia o trigo necessário a Roma.

Uma terra capaz de produzir quantidades enormes de alimentos e fácil de defender não se poderia tornar uma base para nobres ambiciosos: ela seria governada por um prefeito.

O imperador era representado por um prefeito da ordem equestre, da sua confiança, instituído de amplos poderes administrativos, jurídicos e militares.

O prefeito regia com a ajuda do exército, em pequenas unidades espalhadas pelo país. Precisa garantir a coleta de impostos e o transporte de grãos, para alimentar os romanos em sua terra natal.

Para o Egito como um todo a conquista Romana acabou por ser benéfica, ao menos inicialmente. Se por um lado o país, pela primeira vez desde o domínio Persa, voltava a ter um Faraó que não residia no Egito (o Imperador Romano tomou para si o título de Faraó), por outro, passava a ter um que se preocupava com o Egito como um todo e não apenas com uma cidade: Alexandria.

Alexandria continuou sendo o principal centro do governo e as antigas divisões dos nomos (províncias) com suas cidades metropolitanas foram mantidas.

O regime agrário também não se modificou: as terras reais e sagradas tornaram-se terras imperiais e mesmo as terras de proprietários privados eram controladas pelo imperador. Muitas delas foram sujeitas a confiscações. Para além do grande domínio sobre este setor da economia, o imperador ainda tinha o monopólio sobre as minas, as salinas e a produção de papiros.

O latim era o idioma dos exércitos, mas a maioria dos detalhes burocráticos era registrado em grego. Em todo o Egito, durante a época ptolomaica, a linha divisória entre os gregos e os egípcios havia se tornado mais sutil com o passar do tempo, pois o critério para ser um grego era aparentemente a simples capacidade de falar grego e dizer que era grego. Uma circunstância que os conquistadores romanos achavam incompreensível e intolerável. Os gregos eram gregos e os egípcios não eram; então, eles tornaram as regras mais rígidas para garantir que esta confusão não acontecesse. Os gregos tinham que comprovar suas origens.

Os egípcios eram considerados uma classe inferior e foram compilados regulamentos por escrito, conhecidos como o Gnomon do Idios Logos, para permitir que as autoridades romanas reforçassem este preconceito e estabelecessem penalidades fixas. Uma grande parte destas normas sobreviveu em um documento de papiro.

Os Imperadores Romanos, ao menos no começo, se preocuparam em desempenhar seu papel de Faraós, sendo assim, construíram diques, templos e palácios. Revitalizaram a economia da região e até deram força às antigas crenças, se bem que com ressalvas, visto que os Romanos não aceitavam duas práticas religiosas nos países que dominavam: Magia Negra e Sacrifícios Humanos.

Sacrifícios Humanos os Egípcios não realizavam, mas, no entanto, aos olhos dos Romanos, a Magia Negra era um crime de sua Religião. Sob o domínio Romano a Núbia voltou a ser contatada, se bem que não dominada (esta é, aliás, uma das mais fortes raízes de indícios de uma possível Cristianização do Reino de Meroë e da difusão do Cristianismo pelo Chifre da África, em Reinos como a Absínia e, quem sabe, o Reino de Prestes João) Entre os feitos Romanos no Egito estão a construção de um novo e bonito oratório na ilha de Philae (que talvez tenha mesmo sido construída inteiramente no Período Romano) e a revitalização de Elefantina como forte de proteção do Egito contra ofensivas oriundas da África Central.

Aliás, no que se refere a Philae, pode-se dizer que ela foi o último resquício da Religião Antiga do Egito. Numa época em que os demais templos já haviam sido abandonados até mesmo pelos turistas que, na época em que os Imperadores (ainda não Cristãos) favoreciam o Egito e seus templos, viviam ocupando os sacerdotes que se haviam convertido em guias turísticos, o templo de Isis em Filae ainda se mantinha ativo e com um Clero residente. Seu oráculo era representante de Isis e de Horus e foi o último bastião do culto da mãe e do filho (que inspirara a história de Maria e Jesus) a resistir no Egito e no mundo Mediterrâneo.

Conta-se que um falcão sagrado com uma penugem de um colorido todo especial vivia sobre o batente de entrada do templo, com efeito, este falcão era o próprio Horus, ou seja, agora que já não havia mais Faraós, o Horus havia se tornado um falcão a habitar o batente da porta de um templo. Foi no governo de Justiniano (527 – 565 d.e.c.) que o templo de Philae foi invadido e destruído por uma horda de Cristãos incitados por seus Clérigos. O falcão sagrado foi morto, o templo foi despojado de todo o seu ouro e os Sacerdotes foram dispersados ou mortos. Era a força de Cristo se impondo (literalmente) sobre os cultos que originaram sua essência, mas a quem ela não pagou outro tributo senão o da condenação por infidelidade e idolatria, as mesmas velhas desculpas de sempre, desculpas que justificaram tantas mortes ao longo da História e que ainda justificam inúmeros preconceitos ignorantes.

Impostos

Sob o governo romano, o Egito foi pesadamente explorado, através da enorme quantidade de regras e impostos.

Os impostos eram injustamente aplicados, com os ricos pagando menos. Os cidadãos de Alexandria eram imensamente privilegiados e pagavam poucos impostos. Os cidadãos das cidades provincianas pagavam mais e os habitantes egípcios da zona rural, muito mais pobres, pagavam muito mais. Um dos mais caros era o imposto da «apuração de votos» introduzido pelos romanos e perpetuado durante os primeiros 3 séculos de seu governo.

Somente os cidadãos de Alexandria podiam requerer o grande prêmio dos primeiros séculos do governo romano «a cidadania romana». Mas mudou perto do ano 200 dC , quando o imperador Sétimo Severo permitiu que Alexandria tivesse um senado e as capitais dos nomos instituíssem conselhos. Os impostos não foram aliviados, o que impedia a prosperidade agrícola. Os homens fugiam de suas casas e de fazendas porque não conseguiam pagar, mas os aldeãos da mesma categoria que eles tinham que recuperar o dinheiro perdido e eram forçados a trabalhar na terra abandonada. Nos locais em que aldeias inteiras eram abandonadas, as comunidades vizinhas eram obrigadas a assumir o fardo do imposto.

Os membros da classe magistral que, em séculos anteriores pagavam com muito boa vontade pela construção de edifícios e pelos serviços públicos, como o fornecimento dos óleos para os banhos, foram forçados a executar suas tarefas de maneira compulsória e em geral eram financeiramente arruinados pela imposição das taxas adicionais. Os coletores de impostos, quando não recebiam as quantias que lhes eram devidas, recorriam à violência e ao encarceramento dos membros da família dos contribuintes relutantes.

Houve muitos períodos durante o governo romano em que a vida se tornou intolerável, mas os séculos V e VI foram provavelmente os mais prósperos para o povo em geral. O tributo para a «apuração de votos» parece ter sido abolido pelo imperador Diocleciano, perto do final do século III. Mas muitas outras taxas continuavam e novas eram introduzidas, com o annona militaris, um imposto para o benefício do exército, e o«imposto da coroa», pago em ouro ao imperador pelas cidades e suas dependências. Muito diferente dos Ptolomeus, que haviam armazenado os grãos e o ouro no Egito, os imperadores romanos levaram embora a maioria destes produtos. Houve uma inflação lenta com o passar dos séculos, mas os preços aumentaram drasticamente apenas a partir do final do século III.

O imperador Diocleciano ordenou as mudanças mais abrangentes na organização do Egito romano, desde a administração original de Augusto. Perto do final do século III, Diocleciano dividiu o país em 3 províncias, para propósitos de administração:




1. o Egito Jovia juntamente com Alexandria, era governado pelo prefeito do Egito,
2. o Egito Hercília e
3. o Egito Tebaida tinham governadores diferentes.

O latim se transformou cada vez mais no idioma da burocracia. Diocleciano também revisou a estrutura dos impostos, introduzindo ciclos de acusações e períodos fixos de arrecadação fiscal, de forma que as pessoas entendiam mais o que se esperava delas. As demandas arbitrárias e inesperadas tornaram-se menos frequentes. As divisões e as amalgamações adicionais do país continuaram durante todo o final do período romano.

Houve várias rebeliões contra o domínio romano. Perto do final desse domínio, os persas ficaram no controle do país durante uma década e foram expulsos em 627; menos de 15 anos depois, os árabes vieram para ficar. Eles destruíram o forte da Babilônia, próximo do local onde a cidade do Cairo seria mais tarde erguida, e depois ocuparam Alexandria em 642, colocando um fim no governo romano depois de quase 700 anos.

Augusto via o sacerdócio egípcio como um centro de patriotismo, desassossego e rebelião e por isso restringiu severamente seus poderes e seus privilégios. Com o triunfo do cristianismo, os oficiais religiosos, principalmente os patriarcas de Alexandria, tornaram-se imensamente poderosos e puderam contrariar as intenções dos governadores do Egito e até mesmo do imperador. O monasticismo foi desenvolvido no Egito. O cristianismo uniu os gregos do Egito com a população egípcia. Como ali se falava mais egípcio do que grego, a Bíblia e os textos cristãos sagrados foram escritos em um idioma que veio a ser chamado de copta, o idioma egípcio escrito com letras gregas e alguns caracteres adicionais da escrita demótica. Com o passar do tempo, o copta começou a ser usado em documentos seculares, apesar do grego continuar sendo muito escrito no período árabe.

Arquitetura


Anfiteatro Romano (Kom El Dekka), Alexandria, Egito
Construído no século 2, esse anfiteatro romano tem 13 partes
semicirculares feitas de mármore branco e cinza.

Muitos dos templos das cidades foram construídos nos estilo egípcio tradicional; mas os edifícios clássicos introduzidos pelos Ptolomeus e no período romano tornaram-se mais evidentes em todo país. Além dos templos clássicos, outros edifícios públicos de formato clássico também foram construídos:

Teatros, hipódromos, ginásios, termas, ninfáceas, ruas colunadas, arcos triunfais e colunas honoríficas.

Alguns dos templos faraônicos presentes nas cidades e aldeias eram muito antigos, mas grande parte dos mais completos e que sobrevivem até hoje foram erguidos pelos Ptolomeus e pelos romanos. Foram construídas igrejas esplêndidas. É possível que no final do século III a maioria dos egípcios já era cristão, ocorrendo um declínio progressivo das religiões pagãs.

Arte e Artesanato

A arte e o artesanato do Egito romano continuaram e também modificaram todos os estilos do passado. As pinturas murais que normalmente retratavam as deidades – Ísis, Atenas... – decoravam muitas das casas localizadas nas aldeias e nas cidades. Durante os primeiros anos do governo romano, algumas esculturas seguiam os estilos tradicionais, mas começou a mudar na época dos ptolomeus. As belas e realistas estátuas de pedra e bronze tornaram-se iguais àquelas produzidas em outras partes das terras clássicas. Apesar do marmóreo branco ser geologicamente escasso no Egito, ele não parece ter sido explorado nos tempos faraônicos, é muito usado durante os períodos ptolomaico e romano tenha sido importado. A fundição do bronze era há muito praticada no Egito e as figuras ocas e volumosas, produzidas pelo processo de encerramento, eram desenvolvidas já no Terceiro Período Intermediário. Durante a época ptolomaica, uma enorme variedade de figuras de terracota foi desenvolvida nas aldeias e nas cidades do Egito, a maioria associada à religião popular, à proteção do povo contra o sobrenatural e a seu bem estar em todos os desastres naturais que pudessem acontecer. Desde o século I dC até os tempos medievais, os ateliês de cerâmica de Assuan tiveram uma produção vasta de mercadorias de barbotina, cerâmica vermelha e de vasos pintados. Algumas da joias de ouro do Egito romano descendiam diretamente das da Dinastia Ptolomaica, particularmente as pulseiras e os anéis de serpente. Os tecidos elaborados, recuperados em vastas quantidades nos sepulcros e nas cidadelas egípcias. Os tecelões do Egito confeccionavam os artigos de vestuário com apenas uma peça e os decoravam ricamente, com motivos de plantas, animais e humanos.


Escravidão e liberdade no seio da antiguidade
Bem antes da invenção das máquinas a vapor, a principal fonte de energia produtiva era o corpo humano.
Isso transformava a liberdade assalariada em exceção e o uso de homens cativos, em regra





É difícil precisar quando se deu a origem da escravidão. Alguns historiadores sugerem que a escravidão humana pode ter decorrido da domesticação de animais, fato que ocorreu por volta de 8000 a.C. na região do Crescente Fértil, no Oriente. Porém, os primeiros documentos revelando a existência de escravos são posteriores, oriundos da Suméria, região meridional da Mesopotâmia, e datados de 2000 a.C..


Sociedades economicamente dependentes da escravidão,
como o sul dos E.U.A e o Brasil, até o séc. XIX,
foram consideradas genuinamente escravistas.

Embora as sociedades que se desenvolveram na Mesopotâmia e no Egito antigos tenham conhecido e praticado a escravidão, não são usualmente consideradas pelos estudiosos modernos como "sociedades escravistas", rótulo que, por sua vez, é aplicado a Itália e Grécia clássicas, além de Brasil, o Sul dos Estados Unidos e o Caribe inglês e francês, entre os séculos XV e XIX. Como se vê, trata-se de um conceito que aponta para uma linha de continuidade entre o escravismo antigo e moderno, e desvela uma tendência de longa duração histórica, qual seja, a de que o trabalho compulsório, e sobretudo a escravidão, foi a regra, não a exceção, para obtenção de mão-de-obra. Se há algo peculiar nessa história é o trabalho assalariado livre, cuja propagação e legitimação são relativamente recentes. A escravidão não desapareceu da Europa durante a Idade Média e continuou vigente até o século XIX nas colônias européias de além-mar. E ainda hoje ouvimos falar de "condições de trabalho análogas à escravidão"...

CIDADANIA FORMADORA DA ESCRAVIDÃO

De acordo com o historiador norte-americano Moses I. Finley, os três componentes da escravidão são: a posição do escravo como propriedade, a totalidade do poder do senhor sobre ele e a falta de laços de parentesco, componentes que possibilitavam ao proprietário vantagens com relação a outras formas de trabalho involuntário. Para Finley, uma sociedade é genuinamente escravista quando a escravidão torna-se uma instituição essencial para a sua economia e seu modo de vida, no sentido de que os rendimentos que mantêm a elite dominante provêm substancialmente do trabalho escravo. Para constituição de tal sociedade, menciona três fatores: a propriedade privada da terra e sua concentração em poucas mãos; o desenvolvimento dos bens de produção e a existência de um mercado para venda, e a ausência de mão-de-obra interna disponível, obrigando os agenciadores de trabalho a recorrer a estrangeiros. Essas condições teriam existido em Atenas, e outras comunidades gregas no século VI a.C., e em Roma desde o século III a.C..


Os mesopotâmios forneceram os primeiros registros de escravidão
sistemática dois milênios antes de Cristo. Abaixo, O mercado
de casamentos babilônico, de Edwin Long (1829 - 1891).

O fortalecimento da noção de cidadania foi a principal causa da ausência de mão-de-obra interna e conseqüente recurso a estrangeiros. Tanto em Atenas quanto em Roma, a abolição da escravidão de cidadãos por dívidas cortou um potencial suprimento de braços visando o trabalho para outrem. A posse da terra também passou a ser uma prerrogativa dos cidadãos: propriedade privada da terra e cidadania reforçavam-se mutuamente. Quando falamos de estrangeiros, portanto, não se trata necessariamente de uma questão étnica, mas essencialmente sociológica. Estrangeiro é aquele que está privado de participação política em uma comunidade, ainda que nela possa ter um papel econômico.

Em Roma encontramos escravos desempenhando as mais diversas funções no artesanato e na agricultura


Escrava grega, pintura do alemão
Max Nonnenbruch (1857 - 1922).

Em Atenas e nas cidades gregas, existiam poucas atividades reservadas exclusivamente a escravos, de modo que esses atuavam lado a lado com outros tipos de trabalhadores, nas cidades - em manufaturas de objetos de metal ou cerâmica - e nos campos - sobretudo na produção de azeite e vinho, artigos de valor comercial. Em geral, o serviço doméstico era reservado a escravos. O mesmo ocorria em Roma e cidades da Itália, onde encontramos escravos desempenhando as mais diversas funções no artesanato e na agricultura. Mas cabe lembrar que a exploração de terras cultiváveis em províncias do Império Romano - no Norte da África, Espanha, Gálias e Bretanha - não foi realizada predominantemente por meio de latifúndios escravistas, mas combinando escravidão e trabalho camponês dependente local. No Império Romano temos ainda uma peculiaridade: o uso de escravos e libertos pelos imperadores no serviço administrativo imperial. Em suma, embora juridicamente o escravo fosse classifi- cado como um objeto, uma coisa, do ponto de vista social, sua condição era muito variada.


Cerâmica grega do séc. V a.C. mostra Ájax, o menor, levando
Cassandra cativa, após a tomada de Tróia pelas forças gregas.


ESCADA PARA A LIBERDADE

Atualmente, é observável na historiografia sobre escravismo antigo uma ênfase na apresentação da escravidão como instituição social e não apenas como uma relação de propriedade. Um impulso nessa direção partiu da acolhida de estudos sociológicos e antropológicos que, muitas vezes, têm por foco as relações escravistas em sociedades africanas. Assim, por exemplo, o antropólogo Igor Kopytoff definiu a escravidão como "um processo de transformação de status que pode prolongar-se uma vida inteira e inclusive estender-se para as gerações seguintes", transformação que implica em o escravo ganhar uma nova identidade social atribuída pelo senhor. De maneira semelhante, o sociólogo Orlando Patterson, em amplo estudo comparativo, afirma que "escravização, escravidão e manumissão não são meros eventos relacionados; são um único e mesmo processo em diferentes fases". Em síntese, mais importante do que o status de propriedade, que caracteriza o escravo como mercadoria, é a trajetória do escravo, da escravização à possível liberdade.

Embora o escravo fosse classificado como objeto, sua condição era muito variada

Esta perspectiva permite lançar luz sobre um fenômeno presente na escravidão grega e romana: a manumissão, isto é, a libertação do escravo. Estamos acostumados a entender escravidão e liberdade como termos completamente antagônicos, mas na Antiguidade essa constatação talvez não fosse tão imediata. Um breve olhar sobre a figura do liberto na Grécia e na Itália clássicas ajuda a problematizar esse ponto.

CLIENTES E LIBERTOS EM ROMA

A clientela é uma relação de dependência entre homens juridicamente livres. Esse tipo de relação social não foi exclusivo da Roma antiga, existindo em muitas sociedades antigas e medievais. Na sociedade romana, em que relações de clientelismo estabeleciam hierarquias informais entre o corpo cidadão, estar sujeito a uma série de obrigações e de costumes não era, portanto, privilégio dos libertos, de modo que se podem traçar algumas identidades com os ingênuos - os nascidos livres.

Como ressalta o historiador Fábio Faversani, "cliente e liberto são iguais no fundamental: são estimados - e se estimam - com uma posição social inferior em relação a seu patrono; estabelecem um vínculo duradouro com esse patronus ao qual deverão prestar benefícios em troca de algumas vantagens". Muda a forma de ingresso na relação: enquanto o cliente ingressa voluntariamente, o liberto o faz por necessidade.

É significativo, nesse sentido, que o grego Políbio, que escreveu no século II a.C. suas Histórias, em que narra a progressiva conquista da região mediterrânica pelos romanos, em algumas passagens traduza o termo latino clientes por apeleútheroi, que, no caso da Grécia, era aplicado aos libertos ainda dependentes de seus ex-senhores.


Gladiadores eram escravos das arenas, podendo conquistar
ao longo da vida grande status, fortuna e até liberdade.

Os gregos usavam termos específicos para os escravos manumitidos: apeleútheros(a) e exeleútheros(a), ambos derivados de eleútheros(a), "livre". Embora pareçam sinônimos à primeira vista, representam diferentes estatutos dos escravos libertados. As evidências literárias e epigráficas sugerem que o primeiro termo indicava "estar livre de (alguém)", enquanto o segundo caracterizava uma situação de liberdade plena. Estaríamos diante, assim, de gradações de liberdade, revelando resquícios de condição servil no estatuto de homem livre. O termo apeleútheros(a) revela a continuidade de relações de dependência entre senhores e escravos para além da manumissão, relações essas às vezes reguladas por leis. Por exemplo, o liberto via-se obrigado a continuar servindo o senhor ou seus familiares por um determinado número de anos antes de ser contemplado com a liberdade plena, ou seja, antes de tornar-se um exeleútheros(a). Essa prática perdurou no mundo grego para além do período clássico, como se percebe na inscrição citada abaixo, do começo do século II d.C., de Panticapaeum:

O liberto via-se obrigado a continuar servindo o senhor por um determinado número de anos antes de receber a liberdade plena

"Pereceste, Estratonico, firme em tua sabedoria e métodos sábios, deixando lágrimas para seu pai pesaroso. Amigo [philos] como que divino, estimado entre aqueles de outrora; inumeráveis gerações aprenderão tua encantadora sabedoria por meio dos livros. Sósias, o liberto [apeleútheros] erigiu esta estela em memória de seu próprio senhor, Estratonico, filho de Zeno."

O liberto aqui se refere ainda a Estratonico como seu "senhor", com o qual mantinha uma relação de amizade (philia). Em outras inscrições deparamo-nos com essa forma de apresentação de status indicando um vínculo de dependência. Mesmo depois de plenamente libertado, o liberto também deveria ter um prostatés, um cidadão que o representasse e protegesse, já que na Grécia o ex-escravo não adquiria de imediato a cidadania.

A relação entre manumissão e cidadania também foi um aspecto diferenciador da escravidão em Roma. Os romanos também tinham dois termos para designar o escravo manumitido: libertus(a) e libertinus(a). O primeiro ressalta a vinculação ao ex-senhor, agora patrono, a quem o escravo libertado devia operae (serviços) e obsequium (respeito). Já o termo libertinus qualifica o liberto do ponto de vista político, como portador de cidadania, em que pese suas gradações. Em Roma predominavam três formas de manumissão: pelo censo, isto é, inscrevendo-se o escravo entre os cidadãos no momento do recenseamento; por vindicta, quando a manumissão era intermediada por um magistrado, geralmente o pretor; e por testamento, quando o testador explicitava o desejo de ver livres seus escravos após sua morte. Todas essas formas implicavam um reconhecimento público da condição do ex-escravo, que agora passava a ser inscrito em uma das 35 tribos da cidade de Roma e tinha direito a voto nas assembléias, isto é, o liberto passava a deter não apenas uma liberdade pessoal, mas também uma liberdade cívica.

A legislação do imperador Augusto a respeito da manumissão introduziu fatores novos que passaram a determinar a condição de liberto. A lex Aelia Sentia, de 4 d.C., estipulou que o escravo que recebesse a liberdade antes dos trinta anos de idade não teria direito, mesmo se seu senhor fosse cidadão, à plena cidadania, ganhando o status de Latinus Junianus. Dessa forma, podia adquirir e transmitir propriedade, firmar contratos, mas não lhe era permitido transmitir seus bens a seus herdeiros naturais. A conseqüência dessa situação é clara: em termos de propriedade, o liberto continuava sob a dependência do patrono, para quem revertia o fruto de seu trabalho, ao mesmo tempo em que comprometia economicamente as suas gerações seguintes.



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